terça-feira, 24 de maio de 2011

EDUCANDO PELA E PARA A ARTE

“[...] a harmonia coloca a alma sob a força de um sentimento que a desmaterializa.”
Rossini (in: Obras póstumas)
1 – A arte educa?
            Lembremo-nos de que educar não é sinônimo de mera transmissão de conhecimentos, isto é o que chamamos de “instruir”. Tomamos “educação” como o ato de levar o indivíduo a um comportamento determinado, o que nos aponta para um dos problemas do ato educativo: pode-se educar o indivíduo para as mais diversas tendências comportamentais de acordo com a orientação que norteie este ato educativo. Um indivíduo pode ser educado para um comportamento ético baseado na moral, na igualdade e na justiça ou para outro que o leve ao preconceito, ao crime e à corrupção.
            Outro aspecto da educação é que ela não se restringe a espaço ou tempo determinados, acontece no dia a dia, mediante palavras e exemplos, começa no momento do nascimento e prossegue até a morte, sendo que para nós espíritas antecede um e prossegue após o outro. O educador Daniel Munduruku expõe o caráter eminentemente social e contínuo do processo educativo em seu livro Sobre piolhos e outros afagos. Nesta obra o autor, pertencente à tribo dos mundurukus, explica como as sociedades indígenas educam suas crianças nas mais diversas formas e momentos, passando para os mais novos o conhecimento de sua cultura em todos os instantes de contato entre as gerações.
            Educação, portanto, relaciona-se com o conjunto de valores que forma uma sociedade, ou seja, sua cultura, seu ethos.
            E como a arte entra nessa história? Ora, toda expressão artística é a expressão de um ethos e ao mesmo tempo que o retrata o atualiza, renova, complementa e transforma.
            A arte, ao transmitir os valores que a movem, leva ao indivíduo que dela se aproxima estes mesmo valores, eis a primeira etapa do processo educativo que a tem como mediadora.
            Uma segunda etapa constitui-se pelos efeitos da arte sobre o indivíduo. É muito difundido o conceito de catarse (do grego kátharsis, eos) que Aristóteles define como a purificação derivada do trazer à tona sentimentos e emoções reprimidas; tal purificação, segundo Aristóteles, era alcançada quando o indivíduo tomava para si os acontecimentos e os sentimentos retratados pela obra de arte, com destaque para o teatro e a literatura.
            Modernamente, teóricos da literatura ampliaram o conceito de catarse para o de “efeito estético” (também conhecido como “estética da recepção”) afirmando a necessidade de estudar-se o efeito de uma obra de arte quando de sua recepção no decorrer do tempo. Vejamos o que diz um de seus principais expoentes, o alemão Hans Robert Jauss:
     Designa-se por katharsis [...] aquele prazer dos afetos provocados pelo discurso ou pela poesia, capaz de conduzir o ouvinte e o expectador tanto à transformação de suas convicções, quanto à liberação de sua psique. Como experiência estética comunicativa básica, a katharsis corresponde tanto à tarefa prática das artes como função social – i.e., servir de mediadora, inauguradora e legitimadora de normas de ação –, quanto à determinação ideal de toda arte autônoma: libertar o expectador dos interesses práticos e das implicações de seu cotidiano, a fim de levá-lo, através do prazer de si no prazer no outro, para a liberdade estética de sua capacidade de julgar. (1979:80-1)
            Arte e educação tem como ponto em comum esse elemento transformador de caracteres e comportamentos.
            A beleza deste conceito levanta uma questão: é possível uma observação prática deste fenômeno de transformação provocado pela catarse? Sim é possível e podemos citar pelo menos um exemplo no qual esse processo foi minuciosamente registrado.
            Em 1996, estreou o espetáculo Cuida Bem de Mim, criado e produzido por participantes da ONG Liceu de Artes e Ofícios da Bahia. Este espetáculo já teve várias montagens e foi sendo modificado ao longo dos anos, com a inclusão das vivências de atores e público em suas várias apresentações, voltadas para alunos de escolas públicas e em situação de risco. A história da formação e transformação do espetáculo e dos resultados obtidos pelo mesmo se encontram detalhadas no livro Cuida bem de mim – teatro, afeto e violência nas escolas, de Ney Wendell. Destaco alguns trechos do capítulo final da obra que entendo como relevantes para nosso debate.
     Nesta aula teatral, os alunos conseguiram assistir à violência, se incluir nela (pois falava-se da escola pública) e ficar indignados com as situações mostradas. O espetáculo, a partir desta indignação, estimulou os jovens a repensar seu lugar na escola se colocando dentro da causa da violência também. [...]. O espetáculo fez com que os alunos se colocassem como responsáveis e buscando soluções. Isto foi observado nos diversos depoimentos em que eles falavam que não iriam mais destruir a escola, iriam parar de brigar, frequentar mais as aulas etc. presenciamos momentos de pedidos de desculpa ao colega, ali mesmo, no debate, e o quanto isto gerava de repercussão nos outros jovens. (2009: 151)
     Confirmamos que o teatro sensibiliza o público e toca-o com o cuidado mantido pelo envolvimento e diálogo aberto, o que o espetáculo Cuida Bem de Mim consegue ao partir do afeto para se chegar à cidadania. (2009: 156)
            É este efeito oriundo da recepção, mais geral do que se pode imaginar, estando arraigado em toda e qualquer obra artística. Não há obra de arte que não provoque um efeito qualquer em quem dela se aproxima.
2 – Razão e Sensibilidade
            Nossa sociedade vem sofrendo uma orientação pragmática que faz com que os campos da ciência e da arte, respectivamente equivalentes à intelecção e ao sensível, sejam encarados como separados e antagônicos. Nada mais distante da realidade. O ser humano enquanto espírito imortal é constituído de razão e sensibilidade, não como duas faces da mesma moeda, mas sim como uma face única, verdadeira Fita de Moebius cuja divisão pelo pensamento cartesiano tem levado à criação de indivíduos aleijados pela ausência de um de seus caracteres.
            Deve-se, portanto, fugir à esta divisão, incentivar o desenvolvimento intelectual em conjunto com o sensível, pois o intelecto puro não possui a amplitude de possibilidades que a imaginação e a sensibilidade lhe conferem; ao mesmo tempo a sensibilidade sem a temperança da razão pode facilmente descambar para a selvageria.
           
3 – Por uma educação (do) sensível
            Tomo este subtítulo de um trabalho interessantíssimo de autoria de João Francisco Duarte Jr. Nele, o autor defende a necessidade de uma educação que tenha o sensível como ponto de partida e de chegada e também como método, i.e., uma educação do sensível para o sensível mediante o sensível. Esta educação da sensibilidade figura-se como “o processo de se conferir atenção aos nossos fenômenos estésicos e estéticos” (2006: 171) e apresenta-se
fundamental não apenas para uma vivência mais íntegra e plena do cotidiano, como parece ainda ser importante para os próprios profissionais da filosofia e da ciência, os quais podem ganhar muito em criatividade no âmbito de seu trabalho, por mais racionalmente “técnico” que este possa parecer. (idem)
            Ainda sobre a educação da sensibilidade o autor continua:
Uma educação que reconheça o fundamento sensível de nossa existência e a ele dedique a devida atenção, propiciando o seu desenvolvimento, estará, por certo, tornando mais abrangente e sutil a atuação dos mecanismos lógicos e racionais de operação da consciência humana. Contra uma especialização míope, que obriga a percepção parcial de setores da realidade, com a decorrente perda de qualidade na vida e na visão desses profissionais do muito pouco, defender uma educação abrangente, comprometida com a estesia humana, emerge como importante arma para se enfrentar a crise que acomete o nosso mundo moderno e o conhecimento por ele produzido. (ibidem)
            De igual forma, não é possível estabelecer um processo novo se não nos desapegarmos de velhos hábitos. Muitas vezes o que vemos nas casas espíritas, em todas as faixas etárias, é o ato de encher a cabeça do indivíduo de informações, como se isso fosse fazê-lo mais evoluído, esquecendo-se completamente o processo pelo qual o indivíduo alcança a maturidade espiritual: o raciocínio sensível. Levar o indivíduo a saber pensar é mais relevante do que fazer com que memorize trechos de obras sem que seja capaz de aplicar o lido ao vivido.
            Claro que é importante que o espírito aprenda as bases da doutrina, seja na evangelização infantil, na mocidade ou no ESDE. Mas de que adianta conhecer apenas a doutrina, i.e., reproduzir em nosso meio o saber especializado que já existe nos meios acadêmicos? Mais: de que adianta conhecer cada linha dos textos doutrinários se o indivíduo não se apresenta capaz de pensar de fato e muito menos de se melhorar?
A arte é apontada o tempo todo como um dos elementos fundamentais para esta educação da sensibilidade, e não poderia ser de outra maneira. Aplicar esta proposta na educação espírita é fator imprescindível para a eficácia do projeto de evangelização de espíritos que chegam diariamente às casas espíritas. A questão que se nos coloca a partir de agora, e que será explorada no próximo item, é esta: COMO?

4 – Uma estrada trabalhosa
            Uma educação do sensível não pode ser alcançada do dia para a noite, o que pode ser um duro golpe em nossa mentalidade moderna, sempre preocupada com o tempo, sempre buscando fazer tudo no mínimo de intervalo. Mas é preciso espaço para caminhar devagar, com calma, saboreando cada passo.
            Eu costumo fundamentar minhas ideias em textos que explorem os mesmos temas que exponho, seja para complementá-los, seja para refutá-los. Desta vez, no entanto, vejo-me forçado a diferente método, pois não existe uma metodologia para a educação da sensibilidade, e o próprio João Francisco Duarte Jr., na obra citada, deixa claro que não se propõe a ditar metodologias, mas sim a esclarecer quanto à necessidade deste tipo de educação.
            O que passo a expor a seguir, portanto, deverá ser fundamentado em minhas próprias vivências ao longo de um processo de educação sensível que começou sem que os envolvidos tivessem plena noção do mesmo. É uma história que começa com o nome Nivaldo de Oliveira Cardoso.
            Meu pai teve pouco acesso à instrução formal, e acostumei-me a ouvir-lhe dizer que era semi-analfabeto. Na realidade, ele terminara o ensino fundamental (à época chamado de 1º grau) já adulto, em um curso oferecido pela PMERJ, força na qual militou durante 25 anos e na qual se aposentou. De fato, seus conhecimentos escolares não iam muito além do que aprendera. Entretanto era uma pessoa muito afeita à leitura e às artes, sendo comum em minha infância o ver com livros os mais diversos que lia com interesse bem como ouvindo música, escrevendo poemas que depois rasgava e mantendo a mente ocupada com cálculos matemáticos e pensamentos sobre filosofias e religiões.
            Para não me alongar e não cansar os leitores com minhas reminiscências, vou dizer apenas que este homem, a quem as contingências da vida levaram a um emprego que muito pouco oferecia no campo do livre pensar, ensinou-me a apreciar as letras, a gostar de ópera, a declamar poesia e a valorizar o estudo. Foi por incentivo dele que comecei a fazer teatro ainda na infância e foi ele o primeiro a me animar a conhecer mais coisas do que a escola de então me oferecia.
            Com o passar do tempo comecei não só a apreciar arte como também a produzi-la, e não estou falando da produção direcionada por outra pessoa como eram minhas apresentações de teatro e poesia na infância: já na adolescência eu criava arte.
            Hoje percebo que foi graças ao saber sensível de meu pai, saber este que só é passível de compreensão plena quando conhecemos a realidade da vida eterna, foi graças a este saber sensível que pude despertar as potencialidades que trouxe comigo para a presente encarnação, e que me fazem querer aprender sobre tudo, fugindo à limitação que a especialização acarreta ao ser.
            Com base nesta minha vivência, entendo que a educação sensível mediante a arte possui ao menos dois aspectos:
1º.    O contato com a Arte – é de extrema importância que o indivíduo seja apresentado às mais diversas manifestações artísticas, tendo um leque de opções que lhe possibilitará definir sua arte de preferência. Neste processo é importante que o educador (que eu gosto de chamar de problematizador ou provocador) tenha a mente aberta para a) apresentar ao educando os mais variados gêneros de arte, b) receber as respostas do educando sem ideias pré-concebidas e c) saber o que conhece e o que não conhece, aprendendo com outros educadores bem como com os educandos. Chamarei este momento de Momento de Fruição¹.
2º.    A produção de Arte – O educador de espíritos deve incentivar seus educandos à criação, vendo-se neste sentido não como alguém que tem todas as respostas, mas como aquele que também experimenta, arrisca, aprende. A mente aberta para os três elementos do item anterior se aplica também neste momento. É o que chamo de Momento de Creação².
É importante que se saiba que não existe arte melhor ou pior, superior ou inferior. Muitas vezes para entrar em contato com o mundo interior do outro será preciso que você descubra uma nova arte, que entre em contato com manifestações muitas vezes estranhas ao seu gosto ou ao seu universo cultural, só assim você será capaz de estabelecer pontes de contato, e só assim você estará trazendo o outro para dentro do processo educativo de maneira ativa.
É da Fruição e da Creação que se faz o Processo Artístico-Educativo da Sensibilidade, donde resultará um ser humano pleno e, finalmente, completo.
Não sei se consegui responder à indagação título do encontro. Espero pelo menos ter indicado alguns caminhos para que cada educador de espíritos sinta-se mais seguro diante do desafio de educar pela arte. Com certeza aprendi muito.
Notas:
1- De fruir = tirar proveito de, gozar, desfrutar.
2- Humberto Rohdem, em Filosofia da arte, estabelece uma distinção de significados entre o verbo criar e sua forma antiga crear. Criar é transferir algo de seu para outro ser (por exemplo, o pastor cria as suas ovelhas). Crear é manifestar sua essência em forma de existência (por exemplo, Deus crea incessantemente).

Referências bibliográficas
DUARTE JR., João Francisco. O sentido dos sentidos – a educação (do) sensível. 4ª Ed. Curitiba: CRIAR, 2006.
JAUSS, Hans Robert. “O prazer estético e as experiências fundamentais da Poiesis, Aisthesis e Katharsis” (Der ästhetische Genuss und die Grunderfahrungen der Poiesis, Aisthesis und Katharsis), trad. De Luiz Costa Lima e Peter Naumann. In: LIMA, Luiz Costa (org.). A literatura e o leitor – textos de estética da recepção. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 63-82.
WENDELL, Ney. Cuida bem de mim – teatro, afeto e violência nas escolas. Ilhéus, BA: Editus, 2009.
(Versão escrita da capacitação intitulada "A influência da arte na educação do ser: Como ampliar seu uso na educação espírita da criança, do jovem e do adulto?", ministrada por mim no dia 19/05/2011, no Centro Espírita Caridade Aymoré)

terça-feira, 17 de maio de 2011

Chama

Vem que te quero rainha,
Que te dou império
Para além de montanhas impalpáveis.

Vem e traça o contorno
E retrata o invisível notável
E te faz imagem imperfeita
Que torna perpétua tua perfeição imaginada.

Vem sem ter hora,
Sem ter quando
Ou por que.
Chega de vez,
Vês que não te falta
No porto o aperto,
O amparo, o abraço.

Vem e me faz esquecer tua partida
E me faz parte da tua vida
E me faz par de dança
Com esperança de deixar de ser só lembrança.

Você antes distante,
Você nunca ausente,
Você sempre sonhada,
Você ao lado.
Num instante diáfano
Traduz-se no etéreo,
Eterniza o relâmpago.
Teu riso em minha boca,
Os teus olhos vêem o que os meus tocam
E a tua mão me traça as linhas do nosso rosto.

quarta-feira, 11 de maio de 2011

Encontro inesperado entre um leitor e uma idéia

Sempre considerei que comprar livros fosse um processo solitário e estritamente pessoal. Afinal de contas, quando saio para comprar roupas estou de certa maneira me inserindo em um padrão que se encaixa no público alvo. Se a compra a ser feita for a de um CD, é bem provável que se busque um que vá ao encontro do chamado gosto popular ou da cultura de massas. Até mesmo quando estamos escolhendo móveis para nossas casas tendemos a seguir tendências da época. Com o livro isto não acontece.
Deixemos de fora os best-sellers instantâneos, fabricados para levar às massas um tipo específico de leitura que também está em acorde com as tendências de um mercado em expansão. Atenho-me ao livro que é comprado quase que por acaso, aquele que ao olharmos na vitrine ou na prateleira parece chamar-nos a desvendá-lo. Isto sim é o supremo ato de liberdade que, a meu ver, somente a compra de livros nos proporciona. Claro que se pode alegar que nem sempre compramos CD’s, roupas ou móveis impelidos por tendências, e nisto também eu me enquadro, mas quando compramos estas coisas costumamos entrar nas lojas a sua procura, raramente nos deixamos escolher pelos produtos, pois é isto o que eles são: PRODUTOS. Com o livro é diferente.
Considero-me um Leitor Andarilho e explico que sentido dou a esta expressão. Várias vezes me acontece sair com o seguinte pensamento: “Hoje comprarei pelo menos um livro”. Qual livro? Não importa, ele me escolherá no momento em que eu passar por ele. Tenho a certeza de que o que eu estiver procurando, embora ainda seja ignorado por mim, irá lançar-se à minha frente tão logo me aviste. Neste processo, caminho por livrarias e sebos, entro, olho, folheio e continuo andando até o momento em que serei escolhido por aquele livro que tem algo a me dizer naquele momento (ou mais tarde, às vezes anos depois da compra quando finalmente o ler) que será fundamental e necessário, até mesmo imprescindível para minha pessoa, para o meu eu interior, para o leitor amador que me mantenho e o leitor profissional que me proponho a ser.
Eis porque sempre julguei tal processo muito pessoal e solitário. É pessoal, pois meus critérios não podem ser ensinados e aplicados a nenhum outro leitor. São meus e se vinculam aos meus gostos pessoais, minha disposição física e mental em percorrer livrarias cheias ou sebos empoeirados, minhas idiossincrasias determinantes do que me parece bom ou não, minha predisposição em arriscar uma leitura nova ou manter-me fiel aos autores de sempre e diversos outros fatores que não cabem numa lista porque não são verbalizados nem raciocinados, apenas sentidos e vividos.
A solidão é oriunda disso. Dificilmente encontro gente com disposição para me acompanhar nessas peregrinações. É preciso tempo, é preciso fôlego, é preciso paciência e um bom par de sapatos macios e confortáveis. Também é preciso um certo espírito aventureiro e mais do que tudo é imprescindível a paixão pela descoberta. Paixão que me faz retirar diversos livros de uma prateleira para no final sair com apenas um debaixo do braço ou que me faz bater os olhos em um título entre centenas de outros, retirá-lo e comprá-lo. Em qualquer dos casos é a paixão que me permite ser escolhido por um livro.
E me aconteceu agora uma surpresa.
Passando pelo centro do Rio de Janeiro, vejo na vitrine de uma livraria na qual compro há muitos anos um anúncio dantesco: “Entrega das chaves em três dias” seguido de “50% de desconto em toda a loja”. O que para muitos seria apenas uma excelente oportunidade de um bom negócio, para mim foi um paradoxo. Como leitor voraz, adoro comprar livros e se puder encontrá-los a um bom preço sinto-me às portas do Paraíso. Como leitor voraz (ainda), lamento profundamente o fechamento de uma livraria, pois todos perdemos com isto.
Parei com minha filha e esposa (que por acaso dará a luz dali a três dias) diante da vitrine e resolvi entrar. A solidão cresceu dentro de mim ao ver os espaços já claros nas prateleiras e as mesas com pilhas e mais pilhas de livros em promoção. O lugar parecia já impregnado de um vazio que estava também em mim, “isolado na poltrona de minha melancolia” para parafrasear Fernando Pessoa, sentindo-me também parte daquela maldita contagem regressiva que só me dava três dias.
Eis que um livro olha por sobre os ombros dos demais e me escolhe, como a desafiar-me a fugir da solidão de um leitor já impregnado da poeira de milhares de capas, já soterrado por tantas páginas que por vezes não são abertas, mas que sempre estarão lá a dizer-me quem sou. Tomo o volume nas mãos, mas o sentimento de solidão e de derrota permanecem mesmo estando eu inclinado a comprá-lo.
Nisto olho para uma grande mesa no centro da loja e vejo minha filha de seis anos com dois livros nas mãos. Ela folheia um e outro e depois de algum tempo diz com resolução que não encontro nem mesmo em mim: “É este que vou querer! Vou levar e ler pra minha irmã quando ela nascer!”. Algo estremece dentro de mim. Olho a meu redor e não vejo mais os espaços em branco vazios nas prateleiras, vislumbro todos os antigos ocupantes daquelas estantes que agora ocupam outros lugares em um número incalculável de casas e cabeças.
Saímos os três da livraria agonizante. Na bolsa um grosso volume de literatura comparada e um belo texto ilustrado com figuras. Na rua o sol brilha forte, as pessoas andam apressadas, carros buzinam. Apenas nós três caminhamos lentamente. Já não me sinto tão solitário. Olho para minha filha e digo intimamente: “Obrigado”.
(28/06/2010)


terça-feira, 3 de maio de 2011

Passe livre

Mãos estendidas,
Coração aberto,
Vontade de servir,
Doação energizada,
Energia doada.

Dou de mim o que me vem de palmas etéreas,
Passo adiante o gesto,
O gosto de ser menor,
De crescer no rebaixar,
De transmitir luz
Estando de olhos fechados.

Não sou eu quem transluz,
Eu-veículo do Alto,
Eu-ferramenta,
Eu-instrumento,
Eu-caridade oriunda do oculto
Que não é mistério.

A mente equaliza
Em sintonias suaves,
O espírito iguala
No desejo doce,
nas sutis freqüências
do que passo,
do que posso,
do que se passa
no meu passe.